CHUVAS E HIPOCRISIA

15/04/2010 14:48

 

Paulo Alentejano*

Nestas horas em que centenas de pessoas morrem ou ficam desabrigadas
em função do desabamento de encostas, enchente e transbordamento de
rios, proliferam na mídia textos e entrevistas de “especialistas” que
buscam apontar as causas ”naturais” e “antrópicas” que explicariam
tais “tragédias”. Alguns destes textos e entrevistas são mais sérios,
outros mais oportunistas. Uns mais pontuais, outros mais abrangentes.
Alguns mais contundentes na crítica aos governantes de plantão, outros
mais benevolentes. Mas, poucos vão a fundo na análise do conjunto de
questões que estão envolvidos nesta complexa problemática.

O que nenhum texto, entrevista ou declaração que circulou nestes
últimos dias disse é que tudo isto tem a ver com o modelo de
desenvolvimento vigente no Brasil desde meados do século XX, baseado
na modernização acelerada, seletiva e conservadora do campo e da
cidade.

E a raiz do problema está na forma acelerada com que se expulsou do
campo brasileiro no último século mais de 50 milhões de pessoas. A
perpetuação do controle das terras pelo latifúndio e a modernização
deste estão na origem da expulsão desta enorme massa de trabalhadores
rurais, os quais foram precariamente absorvidos pelas grandes cidades
brasileiras. A histórica reivindicação da reforma agrária foi não só
negada, como substituída por uma política de incentivo ao
desenvolvimento de tecnologias poupadoras de mão-de-obra no campo,
levando ao aumento da concentração fundiária e ao desemprego e
subemprego generalizados no campo e à conseqüente expulsão de grandes
contingentes de trabalhadores rurais para as cidades.

E para onde foram estes trabalhadores? Para as áreas das grandes
cidades que não interessavam ao grande capital imobiliário, por conta
dos custos de produção mais elevados: as encostas dos morros e as
várzeas dos rios. Não porque inexistam espaços urbanos vazios em
melhores condições para a moradia destas pessoas, mas porque estes
vazios estão controlados pelo capital imobiliário, aguardando a
valorização destas áreas. Da mesma forma, há um sem número de prédios
e apartamentos vazios nas nossas grandes cidades, mas estes não podem
ser ocupados por estas pessoas, pois o “sagrado direito de
propriedade” garante o direito dos proprietários de mantê-los vazios,
mesmo que isto signifique empurrar milhares de pessoas para morar em
áreas “de risco”.

Portanto, o que está raiz das centenas de mortes que se repetem a cada
chuva é a propriedade privada!!! Enquanto o direito de propriedade
imperar sobre o direito à vida estas tragédias se repetirão. Enquanto
a reforma agrária não for feita, permitindo que muitos trabalhadores
que foram expulsos do campo tenham o direito de para lá retornar e que
outros que ainda lá estão não sejam expulsos, estas tragédias se
repetirão. Enquanto a reforma urbana não for feita, colocando à
disposição dos trabalhadores os terrenos e as moradias mantidos
fechados pelos especuladores urbanos, estas tragédias se repetirão.

É certo que a geografia do Rio de Janeiro favorece a ocorrência de
deslizamentos de encostas e transbordamento de rios, mas não é certo
que os trabalhadores só tenham a possibilidade de morar nestes
lugares, nem que devam morrer por causa disso. É certo que também
desabaram encostas onde havia mansões, mas só morreram os pobres. É
certo que todos na cidade sofreram com as chuvas, mas o grau de
sofrimento é incomparável.

E agora o que vemos se descortinar é mais um exemplo da hipocrisia das
nossas elites, através da multiplicação das declarações de políticos e
editorias da grande imprensa defendendo a remoção das populações
residentes em áreas “de risco” em nome da “segurança destas próprias
pessoas”. Trata-se da retomada de uma das práticas mais autoritárias
levadas a cabo na construção do espaço urbano de nossas grandes
cidades e que longe de proteger “os pobres” acentuou as nossas mazelas
sociais. Ou esquecemos que as favelas removidas do entorno da Lagoa
Rodrigo de Freitas deram lugar a prédios de alto luxo enquanto a
população que aí residia foi deslocada para lugares como a Cidade de
Deus, repleta de problemas de infraestrutura e internacionalmente
famosa pela violência.

Se o propósito é realmente o de proteger os trabalhadores que moram
nas “áreas de risco”, então vamos destinar imediatamente para moradia
as centenas de prédios – alguns inclusive públicos – que se encontram
hoje vazios na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Podemos começar
pelos da região portuária do Rio, onde há inúmeros prédios e terrenos
públicos e privados abandonados...

Mas, não, isso não é possível, afinal esta área já está destinada para
os mega empreendimentos imobiliários voltados para a modernização da
região portuária do Rio, visando a Copa do Mundo e as Olimpíadas...

A hipocrisia das elites brasileiras é incomparável... E inconcebível!


*Paulo Alentejano – Professor do Departamento de Geografia da
FFP/UERJ, integrante da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) e
da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA).

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